
Vão dizer que nunca se fizeram essa pergunta?
Quem nunca redigiu uma petição ou leu um relatório de acórdão e se deparou com uma alternância de tempos verbais — ora no passado, ora no presente — e se perguntou: “Isso está certo?” Pois bem, hoje vamos esclarecer esse ponto, que é mais comum do que parece e está perfeitamente respaldado pela norma culta da língua.
Um exemplo realista
Imagine que você esteja diante da seguinte redação, presente no relatório de uma sentença ou de um voto em acórdão:
“João da Silva ajuizou ação de indenização contra Pedro da Costa (autos n. 98.567.777).
Sustenta que no dia 23-7-2017 transitava pela avenida Getúlio Vargas quando a motocicleta conduzida pelo réu colidiu com o seu automóvel, causando os danos discriminados às fls. 10-11.
Assevera que buscou pessoalmente com o réu o ressarcimento dos danos, contudo não teve êxito, de forma que outra saída não teve a não ser o ajuizamento da presente demanda.
Requereu, ao final, a condenação do réu ao pagamento da quantia de R$ 6.500,00 a título de indenização pelos danos materiais sofridos.”
Nesse trecho, observamos uma interessante alternância de tempos verbais:
- No primeiro parágrafo: “ajuizou” (pretérito perfeito);
- No segundo: “sustenta” (presente);
- No terceiro: “assevera” (presente);
- No quarto: “requereu” (pretérito perfeito).
E agora, a pergunta inevitável: essa mistura está correta?
A resposta: sim, e com respaldo gramatical!
Essa construção é perfeitamente válida e tecnicamente correta. A chave para compreendê-la está no conceito de presente histórico.
O que é o presente histórico?
O presente histórico é um recurso estilístico em que se usa o tempo presente para relatar fatos passados, com o objetivo de torná-los mais vívidos, presentes e próximos do leitor. É uma técnica muito utilizada em textos jornalísticos, literários e, como vimos, também em textos jurídicos.
Assim, quando o relator escreve que a parte “sustenta” ou “assevera” algo que está na petição inicial, ainda que o documento tenha sido apresentado no passado, ele está apenas usando o presente histórico para dar mais dinamismo à narrativa.
Em outras palavras, a forma é presente, mas o sentido é passado.
Pode-se usar o passado no lugar?
Sim. Poderíamos perfeitamente reescrever os trechos no passado:
“Sustentou que transitava…”
“Asseverou que buscou…”
Ambas as versões são aceitáveis e corretas. A diferença é de efeito estilístico. O presente histórico dá uma certa vivacidade ao texto, enquanto o passado reforça a cronologia dos fatos. Em peças jurídicas, ambas as abordagens são adotadas — e muitas vezes, até combinadas no mesmo texto, como no exemplo acima.
E o presente com valor de futuro?
Outra aplicação curiosa do tempo presente é quando ele se refere a um fato futuro. Vejamos este exemplo, extraído de um acórdão:
“Portanto, remetam-se os autos à origem, onde o réu, querendo, pode arguir a nulidade em tela.”
O verbo “pode”, aqui, tem sentido futuro, ainda que conjugado no presente. A ideia expressa é: quando os autos voltarem à origem, o réu poderá apresentar sua alegação. De novo, temos um caso em que a forma verbal não coincide com o tempo real da ação, mas a norma culta e o uso forense permitem esse expediente.
Se você está elaborando uma petição, relatório ou acórdão, e se vê alternando entre o passado e o presente, saiba que isso não é erro, desde que a lógica do texto esteja preservada. A alternância, quando bem usada, enriquece o estilo e facilita a leitura.
Portanto, use com segurança o presente histórico — e impressione pelo domínio da linguagem tanto quanto pelo domínio do direito.
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