
“Motivo pelo QUAL SE PASSA à análise do mérito” ou “motivo pelo QUAL PASSA-SE à análise do mérito”?
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“Você deve se preocupar em escrever bem, e não em fazer perguntas como essa”.
Foi esse o começo de uma resposta que recentemente dei a um aluno.
Ele queria porque queria saber se o correto é “motivo pelo QUAL SE PASSA à análise do mérito” ou “motivo pelo QUAL PASSA-SE à análise do mérito”.
Parecia ser questão de vida ou morte que eu lhe desse, naquele momento, uma resposta correta.
Entre as muitas bizarrices que a gramática normativa traz, um assunto do qual realmente não gosto e, em alguns aspectos, até discordo é colocação pronominal.
Sempre que os alunos me perguntam sobre o tema, respondo mais ou menos nos termos em que exporei neste e nos dois próximos posts. E não é que eles geralmente gostam?
O aluno que me fez aquele questionamento, por exemplo, adorou. Acho curioso.
Tem gente que nem sequer sabe desenvolver um parágrafo de forma coerente e coesa, aliás, nem sabe direito o que é um parágrafo (pensa que se trata apenas de forma, não de conteúdo), e se importa em saber se os pronomes relativos atraem (atraem? que diabos é isso?) os pronomes oblíquos átonos.
Ou estou ficou muito ranzinza ou alguma coisa está de fato muito errada. Das duas uma.
O problema na pergunta do aluno está nela própria.
É que, para obter a resposta, não há necessidade de ter um professor, ali, no caso eu, em pé, para explicar; uma simples consulta ao Google bastaria para saber que o correto, conforme a gramatica normativa, é “motivo pelo qual se passa à análise do mérito”.
O que eu espero de vocês (escrevo agora como falei para aquela turma específica; não necessariamente se aplica a vocês, seguidores) são perguntas do tipo “há alguma técnica para prender a atenção do leitor ao meu texto?”, “necessariamente uma peça bem escrita é uma peça compreensível?”, “em que medida o leitor participa da formação do sentido do meu texto”, perguntas que, agora, sim, podem ser objeto de uma discussão mais madura, adulta.
Vão por mim: vocês, operadores do direito, sobretudo aqueles já estabelecidos na carreira, têm muito mais com que se preocupar quando o assunto é redação jurídica.
As perguntas devem ser outras.
E definitivamente não são sobre colocação pronominal.
Lembrei agora do Aldrovando Cantagalo. Esse é o nome do professor, personagem de Monteiro Lobato, que chamava de “doente” quem não usava o pronome oblíquo átono conforme a dita norma culta.
Certo dia, ao autografar um livro que publicou com o intuito de acabar com a ignorância gramatical da população, percebeu que todos os exemplares foram impressos com um erro de colocação pronominal, assunto pelo qual nosso professor tanto prezava.
Ao constatar o erro, Aldrovando não suportou e veio a morrer de uma doença que, por ausência de nome, os médicos denominaram de “dor gramatical”.
Há muitos Aldrovandos Cantagalos por aí.
Há muitos professores que, sem saberem a lógica por detrás da colocação pronominal, se apavoram quando veem construções do tipo “Me disseram que ela foi embora”, em que pronome em posição proclítica (antes do verbo) inicia a frase, construção que, pela gramática normativa, deve ser execrada da língua a qualquer custo.
Não gosto do assunto colocação dos pronomes oblíquos átonos porque as regrinhas que ele pressupõe são, exclusivamente, de natureza fonológica, prosódica, relacionada à fala; elas funcionam, na maioria dos casos, apenas em Portugal, não aqui no Brasil.
Isso porque, para os portugueses, o “me” em “Disseram-me que ela foi embora” é átono; é uma palavra tão fraca fonologicamente que quase some na fala.
Portanto, os falantes do português europeu NATURALMENTE empregam aí a ênclise, pois o “me”, fraco para eles, deve se apoiar em uma sílaba mais forte, no caso o “ram” do “Disseram”.
Já para os falantes brasileiros, o “me” nada tem de átono; é quase tão tônico quanto o “mim”. Façam o teste vocês mesmos: pronunciem as frases “Me disseram” e “Isso é para mim”. Perceberam a tonicidade do “Me”?
Ora, não sendo átono, o nosso “me” não sente necessidade de se prender a outra sílaba mais forte; subsiste sozinho!
Por isso, dizer e escrever, aqui no Brasil, “Me disseram que ela foi embora”, com o “me” proclítico no início de frase, nada há de errado considerando-se a razão de ser das regras de colocação pronominal.
Para os lusitanos, os pronomes “me”, “te”, “se”, “nos”, “vos” são realmente átonos; para os brasileiros, não.
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Tá tudo muito bom, tudo bem explicadinho, já sabemos que as regras de colocação dos pronomes oblíquos átonos funcionam muito mais para o português de além-mar do que para o nosso, mas a pergunta que não quer calar é: nas nossas peças jurídicas, devemos ter a preocupação de colocar os pronomes conforme prescreve a gramática normativa?
Bom, pensem comigo.
Faço um esforço danado para elaborar uma peça bem escrita, estudo o caso, reviso meu texto, faço, enfim, um trabalho impecável, vocês acham mesmo que “errarei” na colocação pronominal apenas porque entendo que os gramáticos estão, infelizmente, ainda apegados ao normativismo lusitano?
Nã-na-ni-na-não! Não vou dar esse gostinho aos Aldrovandos.
O que eu quero é que eles se curvem para mim e pensem mais ou menos assim enquanto leem meu texto:
“Que trabalho maravilhoso. Além de ser muito prazeroso de ser lido, está totalmente de acordo com as normas gramaticais!”.
Brincadeiras à parte, a verdade é que nós, operadores do direito, somos frequentemente monitorados pelo modo como escrevemos.
O texto jurídico é texto técnico, que exige, na medida do possível, aprumo da linguagem.
Se para tanto tivermos de nos socorrer ao artificialismo da ênclise, que assim seja. É triste?
É, mas são as regras do jogo.
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O lado bom dessa história é que, acreditem, todos vocês sabem empregar corretamente (entende-se: conforme a gramática normativa) os pronomes oblíquos; não há necessidade de ficarem decorando os casos de palavrinhas que atraem o pronome para a frente do verbo ou babaquices do tipo.
Leiam as frases abaixo. Sem pensar em nenhuma regra de colocação, apontem as corretas:
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⠀a) O réu tinha se sentido acuado.
⠀b) O réu tinha sentido-se acuado.
⠀a) Não se resignando com a sentença, a autora apelou.
⠀b) Não resignando-se com a sentença, a autora apelou.
⠀a) A testemunha não compareceu porque se sentiu mal.
⠀b) A testemunha não compareceu porque sentiu-se mal.
Escolheram, em todos os casos, a letra “a”, não foi? Pois acertaram!
Tá aí outro motivo pelo qual me irrito quando me pedem para discorrer sobre colocação pronominal.
Todos nós já dominamos o assunto!
A única dificuldade poderia ser o uso do pronome no início das frases, tão natural para nós, brasileiros.
Trata-se, todavia, de regra tão batida que tenho certeza que ninguém aí “erra” mais.
A escola geralmente manda mal em matéria de língua portuguesa; não ensina o porquê das coisas.
E quando o assunto é colocação pronominal, sua incompetência aumenta em progressão geométrica.
Penso que desabafos como este às vezes são necessários.
Era isso.