
Quem trabalha com redação de decisões judiciais sabe que a linguagem jurídica pode ser tanto um instrumento de clareza quanto um mecanismo para ocultar incertezas. No ambiente dos tribunais, a escolha das palavras não é apenas uma questão estilística, mas também estratégica.
Nos meus projetos de acórdãos, era comum empregar expressões como:
- “ficou devidamente comprovado nos autos”
- “está muito claro que”
- “não resta nenhuma dúvida de que”
- “em detida análise dos autos”
Superficialmente, essas frases conferem firmeza à decisão. Mas, confesso, às vezes elas serviam para esconder minha própria insegurança quanto à correção do projeto de decisão que eu redigia. A ideia era reforçar a argumentação e evitar questionamentos do desembargador, facilitando a aprovação do texto.
O Processo Decisório Não É Apenas Racional
Isso não significa que a decisão estivesse errada, mas evidencia um ponto muitas vezes ignorado por quem está fora dos gabinetes: o processo decisório não é movido apenas por lógica e técnica jurídica. Fatores como o humor do magistrado, a pressão por produtividade e até a composição da câmara julgadora podem influenciar o desfecho de um caso.
O professor Alexandre Morais da Rosa, em Guia do Processo Penal conforme a Teoria dos Jogos, destaca esse fenômeno ao afirmar:
“Se o julgador está convencido da culpa do acusado, promove correlações inexistentes entre as provas produzidas e a imputação, inferindo causalidade onde simplesmente não existe. Aliás, toda vez que o juiz adjetivar – sobejamente, cumpridamente, fartamente comprovadas –, desconfie, porque, se precisou adjetivar, é porque está em dúvida e usa do recurso linguístico para sublinhar o inexistente.”
Esse trecho ilustra como a linguagem pode ser manipulada para reforçar uma tese, mesmo quando as provas não são tão sólidas.
O Que Fazer Diante de Uma Decisão Cheia de Adjetivos?
Se uma decisão desfavorável vier repleta de advérbios e adjetivos exaltando a certeza dos fatos (“fartamente comprovado”, “indiscutivelmente demonstrado”), isso pode ser um indício de que há margem para questionamento. E, nesses casos, a estratégia deve ser bem definida:
- Buscar as provas concretas – Se o juiz afirma que algo está “claramente demonstrado”, mas não indica exatamente onde, essa fragilidade pode ser explorada em um recurso.
- Evitar adjetivações na própria argumentação – Se a fundamentação da decisão for baseada em construções subjetivas, a melhor estratégia é confrontá-la com argumentos objetivos, diretos e bem fundamentados.
- Desconstruir a retórica excessiva – Se um magistrado precisa repetir que algo está “devidamente” ou “inegavelmente” comprovado, há grandes chances de que a prova concreta não seja tão forte quanto ele quer fazer parecer.
Conclusão
A linguagem no Judiciário não é apenas um reflexo da técnica jurídica, mas também uma ferramenta persuasiva. Expressões que aparentam certeza podem, na verdade, esconder dúvidas e tornar a decisão vulnerável a questionamentos.
Por isso, ao ler um acórdão ou sentença, fique atento: quanto mais adornada a argumentação, maior a possibilidade de que um recurso bem estruturado possa desmontá-la. Afinal, na prática do Direito, não basta conhecer a teoria – é preciso entender o jogo.
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