Polifonia em peças jurídicas e a conjunção “que”
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Diz-se que um texto é polifônico quando nele aparecem várias vozes (poli = muitas; fonia = voz), e “vozes” no sentido de “textos”.
Quando um autor cita outro, por exemplo, temos caso de polifonia textual.
A polifonia ou intertextualidade é uma das características dos textos jurídicos, principalmente das peças.
Numa sentença, ao narrar no relatório as principais ocorrências havidas no processo, o juiz não raro é obrigado a se valer da polifonia, consignando os argumentos das partes.
Vejam:
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⠀“Na contestação, o réu sustentou que o terreno foi invadido no ano de 1999…”.
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Reparem que quando o juiz escreve na sentença um argumento da parte, ele está trazendo outra voz, outro texto para dentro do seu próprio texto.
Na frase acima, está trazendo o texto da contestação para dentro do texto da sentença.
Daí se falar em polifonia.
Peças elaboradas por advogados geralmente também são textos polifônicos.
Basta pensar que, ao apresentar uma defesa, o procurador do réu obrigatoriamente tem de fazer referência ao que foi dito pelo causídico do autor na petição inicial (outro texto).
Por exemplo:
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⠀“Falta com a verdade o autor quando alega que não contratou os serviços que lhe foram prestados…”.
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Uma vez que, no caso de peças jurídicas, a polifonia ou intertextualidade é representada muito mais por paráfrases do que por citações diretas, o redator tende a fazer períodos compostos por subordinação com orações substantivas desenvolvidas e, portanto, com a conjunção integrante “que” (alegou QUE, disse QUE, sustenta QUE), estrutura a qual, se não for prestada bastante atenção, pode acarretar falta de clareza ao texto e, tratando-se de peças de advogados, vir até a prejudicar a parte, conforme falarei A SEGUIR.
O perigo das frases “o autor sustenta QUE” e “o juiz decidiu QUE”
Por serem polifônicas as peças jurídicas, é muito comum o emprego de estruturas como “o autor sustenta QUE”, “o juiz decidiu QUE”.
E aqui reside o perigo, pois muitas vezes nos esquecemos de repetir o “que” ou uma estrutura com ele na continuação da frase, ou repetimos a conjunção inadequadamente, deixando o texto obscuro ou com o chamado “queísmo”.
Leiam o seguinte trecho de uma contestação:
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⠀“O autor sustenta que o réu deixou de pagar alimentos em 2017.
Ademais, o réu é sócio de uma grande empresa de tecnologia, de modo que possui, sim, condições de pagar os alimentos no valor que fora fixado.”
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Até “2017” não há nada de errado.
Mas na continuação parece que o réu está depondo contra si próprio, dizendo que é sócio de uma grande empresa e que tem, portanto, condições de pagar os alimentos.
Para corrigir, basta fazer novamente uma construção com “que”.
Assim: “Ademais, alega que o réu é sócio…”.
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Semelhante problema ocorre na frase abaixo.
Reparem a falta de “que” antes de “o INSS”:
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⠀“A ré alegou que recebeu indenização do seguro obrigatório e o INSS lhe concedeu auxílio-doença desde a data do acidente até 11-8-2009.”
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Agora leiam esta frase:
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⠀“A ré declarou que seu marido é aposentado e que percebe proventos de aproximadamente R$ 3.000,00.”
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O “que” antes de “percebe” está sobrando, pois quem percebe proventos não é a ré (a repetição do “que” leva a esse entendimento), mas o seu marido.
Estruturas polifônicas podem igualmente levar à repetição de “quês”, dando azo ao indesejado “queísmo”.
Notem:
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⠀“O agravante afirmou que apresentou documentação que comprova que é agricultor e que não possui bens imóveis em seu nome.”
Que, que, que, que… Isso irrita o leitor.
Para eliminar o queísmo, uma dica é transformar as orações substantivas em reduzidas de infinitivo:
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⠀“O agravante afirmou ter apresentado documentação que comprova ser agricultor e não possuir bens imóveis em seu nome.”
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Melhorou, né?
Cuidado então com as estruturas polifônicas, pessoal. Revisem as peças! É na revisão que conseguirão ver se há “que” sobrando ou faltando.